Sempre recebo perguntas se seria adequado que paróquias e também movimentos “de família” ofereçam a preparação para o matrimônio online. Assim, os casais poderiam escolher livremente em a preparação entre aquelas com alguma certificação, como acontece a escolha de um curso universitário. No Brasil temos notícias de alguns “cursos” neste formato. Em diversos países, como principalmente nos EUA, esta é uma prática bastante difundida. Será que faz sentido investir em sua expansão?
Para bem compreender minha resposta é necessário, antes, conhecer os fundamentos que me levaram a formar tal opinião. Assim, não recomendo saltar os parágrafos seguintes mesmo que a típica ansiedade contemporânea nos leve a buscar a conclusão nas últimas linhas.
Começo destacando o valor da tecnologia para a evangelização. Isso não se pode negar. Em 2002, no 36º Dia Mundial das Comunicações Sociais, o Papa São João Paulo II afirmou que a Internet é o “novo foro para a proclamação do Evangelho”. São inúmeras as opções de evangelizações possíveis, da disseminação da homilia diária ao acompanhamento em tempo real das celebrações papais, passando pelas redes sociais, grupos de WhatsApp, cursos online etc. Em sua mente agora certamente passaram algumas destas possibilidades. Hoje há grandes apostolados frutuosos e unicamente digitais. Talvez o próprio leitor tenha se convertido ao catolicismo através de aproximação por algum conteúdo online. Então, primeiro elemento é que a Internet é uma grande ferramenta a ser utilizada para o crescimento e formação da Igreja.
Em seguida devo dizer que, mesmo sendo boa, a Internet não resolve tudo. Não podemos viver plenamente a fé apenas por meio de telas. Não vivemos de uma “igreja online”. A fé cristã é encarnada (Jo 1,14). As ferramentas digitais podem auxiliar, mas não substituem a presença física, a convivência comunitária e a experiência concreta da vida paroquial.
O recente documento Rumo à presença plena – Uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais (RPP), do Dicastério para a comunicação, 2023 nos faz alertas neste sentido.
“É importante apreciar o mundo digital e reconhecê-lo como parte da nossa vida. No entanto, é na complementaridade das experiências digitais e físicas que se constroem a vida e a jornada humanas”(Parágrafo 17). “Não existe comunicação sem a verdade de um encontro. Comunicar-se consiste em estabelecer relacionamentos; em “estar com” (Parágrafo 45).
Os movimentos “de família” mais frutuosos são alicerçados pelos encontros de grupos ou células. Mesmo que invistam na promoção e na formação on-line, eles não abrem mão das reuniões em pequenos grupos onde se cria fraternidade e, além do momento formativo, a hora do “cafezinho” aproxima os corações. Aliás, o documento RPP acima citado, também fala da importância destes momentos:
“Não se pode compartilhar uma refeição através de uma tela. Todos os nossos sentidos participam, quando compartilhamos uma refeição: paladar e olfato, olhares que contemplam o rosto dos comensais, ouvindo as conversas à mesa”(RPP 61)
Avançando um pouco mais, vamos ao caso específico da preparação para o matrimônio. A união de duas pessoas em uma só carne é uma realidade que manifesta a união de Cristo com a Igreja, e essa manifestação é sempre corporal, real e comunitária. A dimensão comunitária da preparação não é apenas uma estratégia pastoral, mas uma dimensão teológica. Assim, como todos os sacramentos se celebram na comunidade, a preparação para o sacramento do matrimônio não faz sentido separada da vida paroquial.
Recentemente, em 2022, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida publicou os Itinerários Catecumenais para a Vida Matrimonial contemplando todas as etapas da preparação. Partem do primeiro despertar no seio da família, passando por atividades formativas para os indivíduos e posteriormente aos casais que caminham para o Matrimônio. A estes, orienta-se o acompanhamento de proximidade com formação, apoio a atração à vida eclesial e que não se encerra no altar, mas continua nos primeiros anos de vida matrimonial.
Para não deixar o texto ainda mais longo, contenho-me em comentar sobre a Etapa Próxima na Fase Catecumenal, que é a fase do “discernimento” do casal:
“O objetivo específico desta etapa é finalizar o discernimento de cada casal acerca da sua vocação nupcial. Isto pode conduzir à decisão livre, responsável e ponderada de contrair matrimônio, ou então levar à decisão, igualmente livre e ponderada, de pôr fim à relação e não se casar”(ICVM 55).
Para isso, nessa etapa onde o casal deve rever (ou conhecer) a doutrina dos sacramentos, o sacramento do Matrimônio e suas diversas implicações e compromissos com as exigências da relação interpessoal, o significado da sexualidade, o “correto” conceito de paternidade-maternidade responsável, a educação dos filhos etc. Estes tópicos são nominalmente citados como currículo mínimo no ICVM com relevante destaque às questões da castidade. Vale a pena ler e refletir.
Mas meu interesse aqui é mostrar que existe um currículo mínimo a ser cumprido e isso poderia ser feito de diversas formas como, por exemplo, cursos presenciais ou online (até mesmo aulas gravadas) com professores especialistas. Contudo, a orientação da Santa Sé não para aí, ela nos diz também que esta etapa (como também para as outras), precisa contar com “casais acompanhadores, nas paróquias e movimentos familiares” (ICVM 8).
A expressão “casais acompanhadores” me leva à reflexão que o verbo acompanhar é a tônica da Igreja quanto ao apostolado com as famílias. Quando publicada a Amoris Laetitia, isso já me havia chamado a atenção e, como alguém (também) das ciências exatas, os números me dizem muito. Logo pesquisei e na exortação, o verbo acompanhar e suas conjugações de substantivações como acompanhamento, está colocado 56 vezes. Além do “querigma”, especialmente no âmbito familiar na realidade paroquial é necessário estar junto, é necessário acompanhar. Valendo-me de linguagem metafórica, acredito que seja necessário reduzir o uso do smartphone e do microfone da sala de palestras para gastar mais sola do sapato e o cafezinho. Mas, isso sem nenhum prejuízo da adequada formação doutrinária que é luz para as famílias. Me refiro aqui ao método e não ao conteúdo.
Fiz a mesma pesquisa no ICVM e temos que este documento apresenta 91 vezes o verbo acompanhar e suas derivações. O foco dos itinerários catecumenais para a vida matrimonial também está no acompanhamento. Por exemplo, ele é claro ao dizer que:
“Deve-se potencializar as experiências “personalizadas” em pequenos grupos de trabalho, escuta e preparação – caso necessário, também como cada casal separadamente – a fim de os casais serem seguidos de perto pelos casais acompanhadores, que podem contribuir para criar um clima de amizade e confiança. Usar a casa também pode fazer com que se sintam acolhidos e à vontade.”(ICVM20)
Como fruto do acompanhamento, pode-se alcançar outro objetivo da etapa próxima no ICVM que é promover a vida da fé em comunidade:
“Ajude-se os casais a aproximarem-se da vida eclesial e a participar nela. Com delicadeza e calor humano, pode-se convidá-los a participar em momentos de oração, na Eucaristia dominical, na confissão, em retiros, mas também em momentos de festa e convivência. A proposta deve aplicar-se de forma gradual (conforme a vivência concreta das pessoas), para ajudar cada casal a sentir-se à vontade nas diferentes áreas da vida da comunidade – litúrgica, caritativa, agregativa – sem imposição ou forçamento, mas, pelo contrário, sentindo-se objeto de uma misericórdia “imerecida, incondicional e gratuita” por terem recebido a chamada e o dom para serem parte da grande família dos discípulos de Cristo.” (ICVM 50)
E para reforçar ainda mais esta dimensão, mais adiante o ICVM, ainda se referindo especificamente à etapa próxima deixa claro que: “Neste tempo de formação e de iniciação, é necessário que a transmissão de conteúdos teóricos venha acompanhada pela proposta de um caminho espiritual que preveja experiências de oração (pessoal, comunitária e de casal), celebrações dos sacramentos, retiros espirituais, momentos de adoração eucarística, experiências missionárias, ou atividades caritativas (conforme os contextos pastorais). (ICVM58)
Para esta dimensão da preparação próxima se viável é necessário haver amizade ou, no mínimo, bom conhecimento, entre casais acompanhadores e casais acompanhados (diferente de professores e alunos), o que se estabelece com tempo e frequência de encontros. Aliás, o ICVM recomenda que a preparação próxima dure cerca de um ano. Na Amoris Laetitia o Papa Francisco já comentava dos frutos de quando a comunidade consegue acompanhar com bom período de antecipação (AL 209).
O ICVM também recomenda os ritos de passagem das fases, o que deveria acontecer na paróquia e só faz sentido se for junto à equipe (aos acompanhadores) que estiveram com eles no percurso. A parIsso não seria possível se seus instrutores online estiverem a quilômetros de distância.
Além disso, o vínculo e a amizade com proximidade real e física, desenvolvidas na etapa próxima vai facilitar a preparação imediata e, principalmente o acompanhamento “por amigos paroquiais” nos primeiros anos de vida matrimonial.
Assim, creio já ser claro ao leitor que a etapa próxima não pode se limitar à instrução (que é completamente necessária), mas também deve ter a dimensão de vida comunitária e de iniciação (ou reiniciação) à vida cristã. Por isso, a paróquia é lugar insubstituível da preparação matrimonial. Não tenho dúvidas que as dimensões de vida comunitária ficam comprometidas com as preparações unicamente online e por isso entendo que é necessária muita prudência sobre a forma de inseri-las nas dinâmicas dos itinerários. O risco dos programas online é fomentar uma lógica de mercado religioso, em que os noivos escolhem um “curso” por variados motivos em vez de se integrarem na sua comunidade concreta de fé.
Então, onde entram os programas on-line? Diante de tudo antes refletido (espero que o leitor não esteja lendo a partir daqui e usando a tecnologia de busca no documento para ir somente ao que interessa e tendo seu entendimento comprometido), acredito que o “Ensino à Distância” ao vivo ou mesmo gravado pode, em certas circunstâncias, ser um meio legítimo, mesmo não sendo o ideal. Mas entendo que não deve ser uma regra e que seria possível utilizar tal ferramenta de modo minoritário dentro de um programa paroquial para complementar os necessários encontros presenciais ou em algumas situações excepcionais a serem discernidas prudentemente pelo pároco, como a intervenção de especialistas, atendimento adicional de casais de casamento misto e disparidade de culto. Uma das situações excepcionais pode ser quando sua paróquia não oferece (mas deveria!) a adequada etapa próxima ou quando o casal reside longe do perímetro da paróquia e, por isso, pode ser conveniente mesclar reuniões online com as presenciais, um modelo híbrido. Fato é que a etapa próxima não deveria ser atendida somente por classes online.
Mas será necessário que as paróquias tenham casais especialistas em diversos temas para atenderem os casais em formação?
Foi a partir desta preocupação que, há 10 anos, foi construído o livro Matrimônio: Encontros de Preparação. Pela simples leitura em grupos (ou mesmo com apenas um casal catequista e um casal candidato ao matrimonio), a doutrina mínima necessária é apresentada sem a necessidades de especialistas. Assim, o livro é o ponto de partida para que o casal catequista possa identificar pontos de necessidade de aprofundamento e trabalhar tais pontos a partir de outros materiais.
Aliás, mesmo nas paróquias onde há especialistas, estes se constituem o apoio das equipes mas a base continua sendo “os casais de esposos” (ICVM 21), os casais da própria comunidade.
Com o livro Matrimônio: Encontros de Preparação, que é acompanhado com o Material de Apoio (livro do catequista), toda paróquia pode ter sua equipe de etapa próxima, sem a necessidade de especialistas. Casais que vivem o matrimonio atendem outros casais em suas casas ou em salas de catequese da paroquia para realizarem uma série de 12 reuniões (semanais ou quinzenais). Cada reunião é simples e objetiva: ler juntos um dos capítulos do livro e conversar sobre ele e, nos dias seguintes até a próxima reunião, fazerem as tarefas propostas. Podem acontecer mais do que os 12 encontros previstos no livro, pois pode-se estudar as leituras complementares (especialmente os livros indicados) bem como incluir outros temas que a paróquia julgue importante, estendendo-se a etapa para vários meses (em sintonia com as recomendações da Santa Sé). O mesmo livro e estrutura podem ser utilizado para os casais de união estável (convalidação), oferecendo a eles o mesmo discernimento, uma vez que a doutrina que á a mesma independentemente da situação do casal.
Para todos os casais, além de apresentar a doutrina, os demais elementos necessários à etapa próximas também acontecem, como a criação de laços e a amizade que permitem acompanhamento e as iniciativas para despertar a fé e incluir os casais na vida paroquial.
Com este ou com qualquer um dos vários materiais disponíveis em vários países, é importante migrar dos modelos online para os presenciais onde a transmissão de conteúdos esteja dentro de um processo de crescimento da fé e da fraternidade paroquial. Se os conteúdos previstos permitem o adequado discernimento, a pertença à comunidade paroquial oferece segurança para os casais não somente se casarem, mas para também viverem bem o estado matrimonial.

